Autor(es): Barros, João Pedro Leite - Adriano Olian Cassano
A pandemia que ora assola o mundo[1] carece de medidas que busquem conciliar tanto a preservação da saúde dos brasileiros e estrangeiros que aqui ingressam como a preservação das empresas e dos empregos. Tais medidas devem apresentar respostas rápidas e coordenadas frente ao cenário atual e futuro do país. E no que diz respeito à esfera da preservação das empresas não se pode descuidar das relações privadas que em que elas se inserem, como as relações de consumo.
Embora a pandemia acabe, de certa maneira, atingindo a todas as pessoas (físicas e jurídicas), é provável que algumas limitações ora impostas em razão da declaração de emergência em saúde pública de importância nacional pelo Governo Federal[2] possam prejudicar mais a alguns do que a outros, demandando decisões urgentes, portanto.
Em razão dessa urgência vem sendo publicadas Medidas Provisórias pelo Poder Executivo, sendo que algumas delas impactam diretamente as relações de consumo em alguns setores da economia (v.g. MP 925 e MP 948).
Embora permite-se presumir que estas MP tenham como origem o objetivo de harmonizar os interesses dos participantes de relações de consumo setoriais e compatibilizar a proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, além de viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica[3], tendo como fundamento a boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores[4], também é preciso admitir que a velocidade com que elas são elaboradas e publicadas podem comprometer essa intenção, pois se não bem redigido o texto incertezas e desequilíbrios acabam emergindo em um cenário que per se não vindicava. Eis, aqui, o caso da MP 948.
Na exposição de motivos dessa MP foi feita por algumas vezes a referência à Portaria MS nº 188/2020. No entanto, no texto da MP, tal Portaria não foi expressamente considerada uma única vez. Ao contrário, preferiu o Executivo referenciar o Decreto Legislativo nº 06/2002[5] e diversos dispositivos. Por meio deste Decreto foi reconhecida a ocorrência do estado de calamidade pública no país em resposta à Mensagem nº 93 de 18 de março de 2020 do Presidente da República[6]. Ou seja, embora o motivo da proposição da referida MP tenha sido a situação de emergência em saúde pública, o texto trazido em seu corpo considerou questões afetas à responsabilidade fiscal.
Com exceção do prazo citado no art. 2º, §1º da MP 948, os demais prazos consideram o encerramento da calamidade pública reconhecida pelo Decreto Legislativo nº 6 de 2020. Para o consumidor essa alteração traz impactos relevantes, pois o fim da situação de emergência em saúde pública se encerrará antes do fim do reconhecimento da ocorrência de calamidade pública[7]. Tendo a MP considerado essa segunda situação, conclui-se que prazo maior foi concedido aos fornecedores para que se planejem e remarquem seus serviços, eventos e reservas cancelados (art. 2º, §3º, II), enquanto ao consumidor restou o ônus de aguardar prazo igualmente maior para restituir o valor por ele pago pelo serviço não prestado (art. 2º, §4º) e somente na situação de não avençadas as hipóteses elencadas nos incisos do art. 2º, embora alternativos[8]. Tal imposição em nada busca defender o consumidor conforme determina a Constituição (art. 5º, XXXII).
Se o reconhecimento da ocorrência de calamidade pública expira somente em 31 de dezembro deste ano (se não prorrogada), não foi possível vislumbrar os motivos que conduziram à determinação pela MP 948 (art. 2º, §1º) do prazo exíguo de 90 dias, contados do último dia 08, para que o consumidor solicite o cancelamento do serviço contratado ). Tal prazo é insuficiente, repise-se, visto que na maioria dos municípios brasileiros vem sendo praticado o isolamento social por recomendação dos governos estaduais ou municipais, dificultando o contato com o fornecedor, também impedido de realizar atendimentos presenciais por determinações dos mesmos governos.
A leitura atenta da redação do art. 2º, §1º da referida MP permite compreender que se não solicitado o cancelamento pelo neste período pelo consumidor, o direito de exercê-lo posteriormente não se torna precluso, mas dele (consumidor) poderá ser cobrada multa ou taxa ou, ainda, exigir algum custo adicional do consumidor, impondo-lhe obrigação com exagerada desvantagem e incompatível com a equidade. Mantida essa redação, o Estado assume preterir a efetiva proteção que deveria ser conferida ao consumidor[9]em detrimento da “sobrevivência” dos fornecedores e da manutenção dos empregos de seus funcionários[10], embora não tenha sido exigido pela MP 948 a efetiva contrapartida destes prestadores pela manutenção da empregabilidade.
A MP 948 silenciou quanto à questão de prestação de serviços turísticos e culturais contratados e pagos não de forma antecipada pelo consumidor, mas parcelada. Neste caso, deveria o consumidor continuar pagando pelo serviço que sequer sabe se e quando será prestado e, ao mesmo tempo, solicitar o seu cancelamento no prazo estipulado pelo art. 2º, §1º, sob pena de não o fazendo ainda ser obrigado a dispender mais recursos para pagar taxas, multas ou qualquer custos adicionais definidos unilateralmente pelo fornecedor?
Evidentemente, a resposta à pergunta anterior é negativa. A pandemia atingiu e fragilizou a todos, ao menos sob o aspecto patrimonial. Sendo tal contrato comutativo de trato sucessivo e a pandemia um fato superveniente, não se vislumbra óbice à modificação de cláusulas contratuais para a suspensão do pagamento[11]. Carlos Roberto Gonçalves entende que a resolução contratual decorrente de inexecução involuntária das partes por caso fortuito ou força maior é possível, contanto que a impossibilidade superveniente seja objetiva, total e definitiva, pois se for apenas temporária, a suspensão dos contratos deve ser aplicável[12].Tal entendimento está em fino ajuste com o art. 6º, V do CDC[13].
Ao solicitar a revisão do contrato, pautada na boa-fé e nos princípios a ela anexos, como o de cooperação e dever de informar, deve o consumidor registrar as tratativas feitas com o fornecedor a fim de que, havendo intransigência por parte deste, caso a questão seja decidida a posteriori em juízo.
A defesa do consumidor, além de ser um princípio norteador da ordem econômica[14], é também um direito fundamental[15], devendo ser ampla e efetivamente resguardado. A reparação por dano moral, enquanto direito básico do consumidor[16], constitui uma das vias para assegurar tal efetividade. Nesta seita, o art. 5º da MP 948 parece colidir frontalmente com o CDC e com a Constituição, tornando laboriosa a argumentação contrária à sua inconstitucionalidade.
A redação do art. 5º da MP 948 foi equivocada no sentido de confundir relação jurídica, constituidora de direitos e obrigações, com a situação jurídica trazida pela pandemia. Igualmente equivocada foi a caracterização das relações de consumo regidas por ela como sendo caso fortuito ou força maior, pois não são tais relações hipóteses excludentes de responsabilidade civil, mas sim, como dito alhures, a pandemia e o fato do príncipe.
Ao contrário do que defenderam alguns especialistas[17], o texto da MP 948 ampliou o desequilíbrio antes existentes na prestação de serviços turísticos e culturais, intensificando a vulnerabilidade dos consumidores destes serviços frente a seus fornecedores. Os incisos do art. 2º da MP 948 são alternativos, mas certamente o inciso III será preterido pelos fornecedores em relação aos outros dois, prejudicando o diálogo e a composição entre as partes, sendo esta desejável em tempos de incertezas[18].
Entretanto, sempre é preciso ter em mente que a comunicação entre fornecedor e o consumidor não é feita de forma igualitária, pois este está em situação de vulnerabilidade em relação àquele e, consequentemente, práticas abusivas podem ocorrer, cabendo indenização de qualquer ordem (patrimonial ou não). E a esse respeito soma-se o receio de que o tempo dispendido pelo consumidor para a solução do reagendamento do serviço contratado e não prestado pelo fornecedor seja demasiadamente longo ou inefetivo, frustrando suas legítimas expectativas e furtando-lhe tempo de vida existencial, igualmente indenizável[19]. Diante de tais considerações é que se impõe a necessidade de extirpar as limitações trazidas pela MP 948 em seu art. 5º.
A MP 948 demonstrou grande preocupação com a saúde financeira dos prestadores de serviços turísticos e culturais, mas foi omissa quanto a qualquer contrapartida ao consumidor em hipótese de insolvência destes fornecedores. Cabe, portanto, inquirir se o objetivo acima presumido da MP 948 de harmonizar os interesses dos participantes de relações de consumo setoriais e compatibilizar a proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico foi realmente atingido com a redação proposta em seus dispositivos. O fato de a pandemia trazer perdas imediatas a alguns setores de turismo e cultura não permite admitir que somente elas auferiram prejuízos ou, ainda, transferi-los somente aos consumidores[20].
Mesmo diante de um cenário de incertezas, é imperioso atuar em observância à Constituição e às normas que dela derivam. Espera-se, portanto, que o Congresso Nacional seja célere e atue com a lucidez necessária para adequar o texto da MP 948, restabelecendo o equilíbrio contratual e evitando que a defesa do consumidor seja prejudicada.
Notas e Referências
[1] A declaração à imprensa pela Organização Mundial da Saúde de considerar a COVID-19 como pandemia pode ser acessada em https://www.who.int/dg/speeches/detail/who-director-general-s-opening-remarks-at-the-media-briefing-on-covid-19---11-march-2020
[2] Declaração esta feita por meio da Portaria MS nº 188, de 03 de fevereiro de 2020, publicada na Edição Extra do DOU de 04/02/2020. Disponível em http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=04/02/2020&jornal=600&pagina=1
[3] Art. 170, CF.
[4] Art. 4º, III, Lei nº 8.078/90 (CDC).
[5] Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/portaria/dlg6-2020.htm
[6] A íntegra do documento pode ser consultada em https://www.camara.leg.br/noticias/646334-chega-a-camara-mensagem-presidencial-sobre-estado-de-calamidade-publica/
[7] Se não encerrada a situação de emergência em saúde pública até 31/12/2020, provavelmente haverá nova Mensagem Presidencial pedindo diferimento do prazo do Decreto Legislativo nº 6/2020.
[8] O uso da conjunção “ou” ao término do inciso II permite essa conclusão.
[9] Vide art. 4º, II, CDC
[10] Vide exposição de motivos da MP 948, mormente o final do item 14
[11] Direito básico do consumidor previsto no art. 6º, IV, CDC.
[12] Gonçalves, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: volume 3 – contratos e atos unilaterais. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 191 e ss.
[13] Em seu livro Manual de Direito do Consumidor: direito material e processual, 7 ed. rev., atual. e ampl. , ed. Método, 2019, Flávio Tartuce e Daniel Amorim Assumpção Neves afirmam que o CDC prescinde do fator imprevisibilidade, sendo aplicável a “teoria da base objetiva” para a revisão contratual, a qual afirma que o desequilíbrio negocial ou a onerosidade excessiva decorra de um fato novo inexistente quando da contratação original.
[14] Art. 170, V, CF.
[15] Art. 5º, XXXII, CF.
[16] Art. 6º, VI, CDC.
[17] Vide recente artigo publicado em: https://www.conjur.com.br/2020-abr-13/mp-age-complementar-cdc-peca-tecnica-dizem-especialistas#author
[18] Sobre a importância da comunicação e conciliação extrajudicial entre fornecedor e consumidor, sugerimos leitura do recente artigo “Diálogo como fiel da balança”, de João Pedro Leite Barros, disponível em https://emporiododireito.com.br/leitura/dialogo-como-fiel-da-balanca-mudanca-de-paradigma-em-face-do-covid-19
[19] Um breve panorama da teoria do desvio produtivo do consumidor escrito por seu idealizador, Marcos Dessaune, pode ser lido em: https://www.conjur.com.br/2019-jul-11/dessaune-teoria-aprofundada-desvio-produtivo-consumidor