Por Cezar Roberto Bitencourt
Inúmeros casos chocantes de feminicídio, nesta semana, chamam a atenção da sociedade para os dados alarmantes desse crime. Houve, inegavelmente, um recrudescimento da violência contra a mulher, demandando atenção especial das autoridades.
A origem da violência contra a mulher transcende as fronteiras das culturas e tem seus precedentes nos primórdios da civilização humana, percorrendo o longo período medieval, ultrapassa a modernidade e chega a nossos dias, tão aviltante, constrangedora e discriminatória, como sempre foi. Segundo Alice Bianchini, “Ao longo da História, nos mais distintos contextos socioculturais, mulheres e meninas são assassinadas pelo tão só fato de serem mulheres. O fenômeno forma parte de um contínuo de violência de gênero expressada em estupros, torturas, mutilações genitais, infanticídios, violência sexual nos conflitos armados, exploração e escravidão sexual, incesto e abuso sexual dentro e fora da família”[1].
Destacamos, em especial, a violência contra a mulher, por ser mulher, uma das mais graves formas de agressão ou violação, pois lesa a honra, o amor-próprio, a autoestima, e seus direitos fundamentais, apresentando contornos de durabilidade e habitualidade; trata-se, portanto, de um crime que deixa mais do que marcas físicas, atingindo a própria dignidade da mulher, enquanto ser humano e enquanto cidadã, que merece, no mínimo, um tratamento igualitário, urbano e respeitoso por sua própria condição de mulher.
Atendendo a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, concluída em Belém do Pará, em 9 de junho de 1994, na linha da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), o Brasil editou a Lei 13.104/2015, criando a qualificadora do “feminicídio”, exasperando a sua punição. O feminicídio — afirma Alice Bianchini — constitui a manifestação mais extremada da violência machista, fruto das relações desiguais de poder entre os gêneros[2].
Elementos tipificadores do crime de feminicídio
Convém destacar, contudo, que não basta tratar-se de homicídio de mulher, isto é, ser mulher o sujeito passivo do homicídio para caracterizar essa novel qualificadora. Com efeito, para que se configure a qualificadora do feminicídio é necessário que o homicídio discriminatório seja praticado em situação caracterizadora de (i) violência doméstica e familiar, ou motivado por (ii) menosprezo ou discriminação à condição de mulher. No mesmo sentido, manifesta-se Rogério Sanches afirmando: “Feminicídio, comportamento objeto da Lei em comento, pressupõe violência baseada no gênero, agressões que tenham como motivação a opressão à mulher. É imprescindível que a conduta do agente esteja motivada pelo menosprezo ou discriminação à condição de mulher da vítima”[3].
Em outros termos, nem todos os crimes de homicídio em que figure uma mulher como vítima configuram esta qualificadora, pois somente a tipificará quando a ação do agente for motivada pelo menosprezo ou pela discriminação à condição de mulher da vítima. Com efeito, a tipicidade estrita exige que esteja presente, alternativamente, a situação caracterizadora de (i) violência doméstica e familiar, ou a motivação de (ii) menosprezo ou discriminação à condição de mulher (§ 2º-A do artigo 121, CP). Assim, por exemplo, se alguém (homem ou mulher), que é credor de uma mulher, cobra-lhe o valor devido e esta se nega a pagá-lo, enraivecido o cobrador desfere-lhe um tiro e a mata. Nessa hipótese, não se trata de um crime de gênero, isto é, o homicídio não foi praticado em razão da condição de mulher, mas sim de devedora, e tampouco foi decorrente de violência doméstica e familiar; logo, não incidirá a qualificadora do feminicídio, embora possa incidir a qualificadora do motivo fútil, por exemplo.
Violência doméstica e familiar
Chama atenção que a redação do inciso I do § 2º-A do artigo 121 apresente-se, no mínimo, inadequada, para não dizer imprópria, verbis: “violência doméstica e familiar”. Efetivamente, observando-se numa análise estrita do vernáculo, esse texto legal está exigindo que a situação fática apresente dupla característica, qual seja, que a situação em que ocorra o crime seja de violência doméstica e familiar, como se fosse a mesma coisa. No entanto, embora possa ser a regra, ela não é exclusiva, embora possa ser excludente. Explicamos: nem toda violência doméstica é familiar e vice-versa. Na verdade, poderá haver violência doméstica que não se inclua na familiar, por exemplo, alguém estranho a relação familiar que, por alguma razão, esteja coabitando com o agressor, ou então, que a violência recaia sobre um empregado ou empregada que presta serviços à família etc. Pois essa relação, a despeito de caracterizar-se como doméstica, não é estritamente familiar, e, com a ligação com a preposição aditiva “e”, poderá gerar intermináveis discussões sobre a necessidade de a referida violência abranger as duas circunstâncias, “doméstica e familiar”, em obediência ao princípio da tipicidade estrita. Por isso, a nosso juízo, teria andado melhor o legislador se tivesse adotado uma fórmula alternativa, qual seja, “violência doméstica ou familiar”.
Menosprezo ou discriminação da mulher
Embora se trate de um crime que tem como fundamento político-legislativo a discriminação da mulher, pode-se constatar que o texto legal qualifica o homicídio em duas hipóteses distintas, quais sejam, (i) quando se tratar de violência doméstica e familiar, ou (ii) quando for motivado por menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Na primeira hipótese o legislador presume o menosprezo ou a discriminação, que estão implícitos, pela vulnerabilidade da mulher vítima de violência doméstica ou familiar, isto é, o ambiente doméstico e/ou familiar são as situações caracterizadoras em que ocorre com mais frequência a violência contra a mulher por discriminação; na segunda hipótese, o próprio móvel do crime é o menosprezo ou a discriminação à condição de mulher, mas é, igualmente, a vulnerabilidade da mulher tida, física e psicologicamente, como mais frágil, que encoraja a prática da violência por homens covardes, na presumível certeza de sua dificuldade em oferecer resistência ao agressor machista.
Quem pode ser vítima desse crime
Via de regra, a uma mulher, ou seja, pessoa do sexo feminino, desde que o crime tenha sido cometido por razões de sua condição de gênero, ou que ocorra em situação caracterizadora de violência doméstica ou familiar. O substantivo mulher abrange, logicamente, lésbicas, transexuais e travestis, que se identifiquem como do sexo feminino. Além das esposas, companheiras, namoradas ou amantes, também podem ser vítimas desse crime filhas e netas do agressor, como também mãe, sogra, avó ou qualquer outra parente que mantenha vínculo familiar com o sujeito ativo.
No entanto, uma questão, outrora irrelevante, na atualidade mostra-se fundamental, e precisa ser respondida: quem pode ser considerada mulher para efeitos da tipificação da presente qualificadora? Seria somente aquela nascida com a anatomia de mulher, ou também quem foi transformado cirurgicamente em mulher, ou algo similar? E aqueles que, por opção sexual, acabam exercendo na relação homoafetiva masculina a “função de mulher”? Há alguns critérios para buscar a melhor definição sobre quem é ou pode ser considerada mulher, para efeitos desta qualificadora. Vejamos a seguir algumas reflexões a respeito.
Vários critérios poderão ser utilizados para uma possível definição, com razoável aceitação, de quem pode ser considerada mulher para efeitos da presente qualificadora. Assim, por exemplo, pelo critério de natureza psicológica, isto é, alguém mesmo sendo do sexo masculino acredita pertencer ao sexo feminino, ou, em outros termos, mesmo tendo nascido biologicamente como homem, acredita, psicologicamente, ser do sexo feminino, como, sabidamente, acontece com os denominados transexuais. Há, na realidade, uma espécie de negação ao sexo de origem, levando o indivíduo a perseguir uma reversão genital, para assumir o gênero desejado.
De um modo geral, não apresentam deficiência ou deformação em seu órgão genital de origem, apenas, psicologicamente, não se aceitam, não se conformando enquanto não conseguem, cirurgicamente, a transformação sexual, isto é, transformando-se em mulher. Segundo Genival Veloso de França, “As características clínicas do transexualismo se reforçam com a evidência de uma convicção de pertencer ao sexo oposto, o que lhe faz contestar e valer essa determinação até de forma violenta e desesperada”[4].
Por essa razão, consideramos perfeitamente possível admitir o transexual, desde que transformado cirurgicamente em mulher, como vítima da violência sexual de gênero caracterizadora da qualificadora do feminicídio, como demonstraremos adiante.
Contudo, não se admite que o homossexual masculino, que assumir na relação homoafetiva o “papel ou a função de mulher”, possa figurar como vítima do feminicídio, a despeito de entendimentos em sentido diverso. Com efeito, o texto do inciso VI do § 2º do artigo 121 não nos permite ampliar a sua abrangência, pois é taxativo: “se o homicídio é cometido contra a mulher por razões de gênero”. E o novo § 2º-A — acrescido pela Lei 13.104/2015 — reforça esse aspecto ao esclarecer que “Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I — (...) II — menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. Aqui, claramente, o legislador pretendeu destacar e proteger a mulher, isto é, pessoa do sexo feminino, pela sua condição de mulher, quer para evitar o preconceito, quer por sua fragilidade física, por sua compleição menos avantajada que a do homem, quer para impedir o prevalecimento de homens fisicamente mais fortes etc. É necessário, em outros termos, que a conduta do agente seja motivada pela violência doméstica ou familiar, e/ou pelo menosprezo ou discriminação à condição de mulher, que o homossexual masculino não apresenta.
Não se trata, por outro lado, de norma penal que objetive proteger a homossexualidade ou coibir a homofobia, e tampouco permite sua ampliação para abranger o homossexual masculino na relação homoafetiva, ao contrário do que pode acontecer com o denominado crime de “violência doméstica” (artigo 129, § 9º, do CP, acrescentado pela Lei 10.886/2004). Com efeito, neste caso, independentemente do gênero, o ser masculino também pode ser vítima de violência doméstica, como sustentamos ao examinarmos esse crime previsto no referido dispositivo legal, no volume 2º de nosso Tratado de Direito Penal, para onde remetemos o leitor.
Ademais, o homossexual masculino, independentemente de ser ativo ou passivo, via de regra, não quer ser mulher, não se porta como mulher, não é mulher, mas apenas tem como opção sexual a preferência por pessoa do mesmo sexo. E ainda que pretendesse ou pretenda ser mulher, e aja como tal, mulher não é, além de não ser legalmente reconhecido como tal, e sua eventual discriminação, se houver, não será por sua condição de mulher, pois não a ostenta. E admiti-lo como sujeito passivo de feminicídio implica ampliar a punição, indevidamente, para considerar uma qualificadora com situação ou condição que não a caracteriza (é do sexo masculino), tornando-se, portanto, uma punição absurda, ilegal, arbitrária e intolerável pelo direito penal da culpabilidade, cujos fundamentos repousam em seus sagrados dogmas da tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade, próprios de um Estado Democrático do Direito.
E, por fim, o eventual desiderato dramático da morte de um homem por seu companheiro não terá sido pela discriminação de sua condição de mulher, pois de mulher não se trata, logo, não será um homicídio “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”, como é tipificado no texto legal (artigo 121, § 2º, VI, CP). Estar-se-ia violando o princípio da tipicidade estrita. Poderá até tipificar um homicídio qualificado, quiçá, por motivo fútil, motivo torpe etc., mas, certamente, não tipificará a qualificadora de gênero.
Uma questão precisa ser esclarecida: a Lei do Feminicídio (Lei 13.104/2015) não tem a mesma abrangência da Lei Maria da Penha. Esta trata, fundamentalmente, de medidas protetivas, corretivas e contra a discriminação, independentemente da opção sexual. Nessa seara, por apresentar maior abrangência e não se tratar de matéria penal, admite, sem sombra de dúvidas, analogia, interpretação analógica e interpretação extensiva, inclusive para proteger pessoas do sexo masculino nas relações homoafetivas. Nesse sentido, há, inclusive, decisões de nossos Tribunais superiores reconhecendo essa aplicabilidade.
Por outro lado, admitimos, sem maior dificuldade, a possiblidade de figurarem na relação homossexual feminina, ambas, tanto como autora quanto como vítima, indistintamente, do crime de feminicídio. Rogério Sanches destaca, com muita propriedade, que “A incidência da qualificadora reclama situação de violência praticada contra a mulher, em contexto caracterizado por relação de poder e submissão, praticada por homem ou mulher sobre mulher em situação de vulnerabilidade”[5]. Na hipótese de relação homoafetiva entre mulheres, por sua vez, é absolutamente irrelevante quem exerça o papel feminino ou masculino no quotidiano de ambas, pois, em qualquer circunstância, ocorrendo um homicídio, nas condições definidas no texto legal, estará configurada a qualificadora do feminicídio.
Pelo critério biológico, identifica-se uma mulher em sua concepção genética ou cromossômica. Segundo os especialistas, o “sexo morfológico ou somático resulta da soma das características genitais (órgão genitais externos, pênis e vagina, e órgãos genitais internos, testículos e ovários) e extragenitais somáticas (caracteres secundários — desenvolvimento de mamas, dos pelos pubianos, timbre de voz, etc.)”. Com essas características todas, certamente, não será difícil identificar o sexo de qualquer pessoa, pelo menos, teoricamente.
Mas, na atualidade, com essa diversificação dos “espectros” sexuais, para fins penais, precisa-se mais do que simples critérios biológicos ou psicológicos para definir-se o sexo das pessoas, para identificá-las como femininas ou masculinas. Por isso, quer nos parecer que devemos nos socorrer de um critério estritamente jurídico, por questões de segurança jurídica em respeito à tipicidade estrita, sendo insuficiente simples critérios psicológico ou biológico para definir quem pode ser sujeito passivo desta novel qualificadora.
Por isso, na nossa ótica, somente quem for oficialmente identificado como mulher (certidão do registro de nascimento, identidade civil ou passaporte), isto é, apresentar sua documentação civil identificando-a como mulher, poderá ser sujeito passivo dessa qualificadora.
1 Bianchini, Alice. O feminicídio. Disponível em http//www.professoraalice.jusbrasil.com.br/171335551º-feminicídio>.Acesso em: 10 maio 2015.
2 Idem, idem.
3 Sanches, Rogério, “apud” Bitencourt, Cezar R. Tratado de Direito Penal, Saraiva, São Paulo, 2017, v. 2, p. 96.
4 França, Genival Lacerda V. De. Fundamentos de Medicina Legal, Rio, Guanabara Koogan, p. 143.
5 Rogério Sanches, idem e bidem.