25 de novembro de 2017, 6h28
1. Contextualização dos fatos
Cenas lamentáveis foram transmitidas pela Rede Globo quando, no último dia 15, “um jovem ator foi agredido, na madrugada desta quarta-feira, no Terminal Parque Dom Pedro II, no Centro de São Paulo, após quase ser assaltado e ser acusado pelos criminosos de ter cometido o crime. Diogo Cintra voltava de uma festa e, próximo ao terminal, foi abordado por dois homens. Eles anunciaram o assalto, mas o ator disse que não tinha nada que pudesse ser levado. Os bandidos insistiram e Diogo correu. Ao chegar no terminal, pedir por ajuda e não conseguir, o jovem avistou os criminosos ao lado de seguranças. Diogo foi abordado e, antes que pudesse falar, foi acusado de ter roubado os rapazes”[1].
A despeito da brutalidade das cenas refletirem, visivelmente, discriminação de raça, de cor e status social, a polícia informou que não podia “qualificá-lo” como injúria racial, porque a vítima não teria ouvido “palavras ofensivas”, como se a agressão física, a contenção forçada e aviltante não representassem também uma forma de “manifestação ofensiva” e injuriante. Aliás, a própria vítima falou na reportagem, em outras palavras, que a linguagem corporal pode ser e é muito mais ofensiva que a linguagem oral.
No entanto, com o exame a distância, pelos fatos transmitidos, parece-nos que se configurou dois crimes de injúria qualificada: uma injúria real e uma injúria racial, simultâneas, como procuramos demonstrar adiante. Contudo, as circunstâncias recomendam cauteloso exame dos fatos para, ao final, a autoridade poder fazer a interpretação adequada.
2. Definição jurídica do crime de injúria
Pode-se afirmar, sucintamente, que injuriar é ofender a dignidade ou o decoro de alguém. A injúria é expressão da opinião ou conceito do sujeito ativo, que traduz sempre menosprezo ou menoscabo pelo injuriado. É essencialmente uma manifestação de desprezo e de desrespeito suficientemente idônea para ofender a honra da vítima no seu aspecto interno. Dignidade é o sentimento da própria honorabilidade ou valor social, que pode ser lesada com expressões que ferem esse sentimento. Dignidade e decoro abrangem os atributos morais, físicos e intelectuais.
A injúria pode ser praticada de qualquer forma: gestos, palavras, símbolos, atitudes, figuras etc. Pode ser realizada por todos os meios idôneos para manifestar o pensamento ou sentimento ofensivo. Se for empregada violência ou vias de fato na sua execução, com caráter aviltante, configurará injúria real, que é uma das formas qualificadas desse crime. Se tiver o propósito de discriminar, poderá configurar a injúria preconceituosa, que é outra forma de injúria qualificada. Ao contrário do que tem sido ventilado nas redes sociais, a configuração do crime de injúria não se limita à manifestação oral ofensiva, mas pode ser caracterizada também por ações corporais, físicas, violência e grave ameaça, aliás, a própria vítima da violência — Diogo Cintra —, afirmou que a “ação é muito mais grave e muito eloquente para caracterizar a injúria”.
Na realidade, nesse caso, houve crime de injúria duplamente qualificado, ou seja, quer pela violência física praticada, quer pela atitude discriminatória, pela só condição de se tratar de pessoa da cor negra. No caso, configurou dois crimes simultâneos de injúria qualificada. Vejamos cada uma dessas modalidades.
2.1. Injúria real (mediante violência)
Injúria real é aquela praticada mediante violência ou vias de fato que, por sua natureza ou pelo meio empregado, se considerem aviltantes. Para caracterizá-la, é necessário que tanto a violência quanto as vias de fato sejam, em si mesmas, aviltantes. A despeito do meio utilizado — violência ou vias de fato —, o atual Código Penal situa a injúria real entre os crimes contra a honra, como uma espécie sui generis de injúria qualificada, atribuindo, corretamente, prevalência ao bem jurídico (honra) que o sujeito ativo pretende ofender. Tanto uma quanto outra necessitam ter sido empregadas com o propósito de injuriar, de ofender, caso contrário subsistirá somente a ofensa à integridade ou à incolumidade pessoal. A distinção entre uma figura delituosa e outra reside exatamente no elemento subjetivo do tipo (dolo) que distingue uma infração da outra, ainda que o fato objetivo seja o mesmo.
Mas o simples uso de violência ou vias de fato é insuficiente para caracterizar a injúria real, sendo necessário questionar qual o propósito que levou à prática da ação, pois, se não pretender injuriar, isto é, ultrajar a vítima, subsistirá a ofensa à sua integridade ou incolumidade física. Na linguagem de Hungria, “mais que o corpo, é atingida a alma. Quer na intenção do agente, quer quanto à dor sofrida pelo ofendido, a ofensa moral sobreleva o ataque à incolumidade física”[2].
Pode-se exemplificar como condutas tipificadoras de injúria real, desde que sejam praticadas com o propósito de ofender: raspagem de cabelo, chicotada, puxões de orelhas ou de cabelos, cuspir em alguém ou em sua direção, um tapa no rosto de pessoas adultas etc. O tapa no rosto, especialmente com a mão aberta ou com as costas da mão, traz em sua essência o desprezo pela vítima, a demonstração de prepotência, de superioridade, ferindo mais a dignidade humana do que a própria integridade física. Traço diferencial dessas condutas comparadas às lesões corporais e às vias de fato reside exatamente no elemento subjetivo, no objetivo pretendido pelo agente: se visar ofender a vítima, ou seja, se seu comportamento for orientado pelo animus injuriandi ou diffamandi, constituirá injúria real; caso contrário, poderá caracterizar qualquer das outras duas infrações referidas (ou mesmo crime de perigo), subsistindo a ofensa à integridade ou à incolumidade pessoal.
2.2. Injúria preconceituosa (qualificada)
A Lei 9.459, de 13 de maio de 1997, criou um novo tipo de crime de injúria, a denominada injúria racial, nos seguintes termos: “Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem. Pena — reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos e multa”. De notar-se que não se afirmou que poderia ser praticada somente através de manifestações orais, mas pela “utilização de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem”.
Cumpre destacar, de plano, que a denominada injúria racial, prevista pela lei referida (que acrescentou o parágrafo 3º no artigo 140 do CP), não se confunde com o crime de racismo previsto na Lei 7.716/1989, embora o objeto de ambas as infrações seja semelhante, apresentam algumas diferenças marcantes. A rigor, embora a injúria racial e o crime de racismo sejam crimes distintos, praticados por condutas igualmente diferentes, ambos têm como finalidade assegurar a pretendida igualdade constitucional, e, dessa forma, o legislador, com esse crime, procura coibir toda a forma de discriminação, preconceito e intolerância, que acompanha a civilização através dos tempos. Ao passo que o crime de injúria racial ofende a honra e a dignidade de pessoa determinada, prescrevendo, in abstracto, em oito anos a partir da data do fato. Aquele (racismo) é crime de ação pública incondicionada e imprescritível, e esta é de ação pública condicionada.
O fundamento político da alteração legislativa reside no fato de que a prática de crimes descritos na Lei 7.716/89 (preconceito de raça ou cor) não raro era desclassificada para o crime de injúria. Acreditando na injustiça de muitas dessas desclassificações, o legislador, acertadamente, resolveu dar nova fisionomia às condutas tidas como racistas e definiu-as como injuriosas, com elevação da pena cominada. A Lei 10.741, de 1º de outubro de 2003, denominada Estatuto do Idoso, acrescentou a hipótese de injúria consistente na ofensa em razão da condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.
3. Elemento subjetivo especial da injúria preconceituosa
Desde o advento da presente lei, têm-se cometido equívocos deploráveis, pois simples desentendimentos, muitas vezes sem qualquer comprovação do elemento subjetivo, têm gerado prisões e processos criminais de duvidosa legitimidade, especialmente quando envolvem policiais negros e se invoca, sem qualquer testemunho idôneo, a prática de “crime de racismo”, ou, então, em simples discussões rotineiras ou em caso de mau atendimento ao público, quando qualquer das partes é negra, invoca-se logo “crime de racismo”, independentemente do que de fato tenha havido. Em sentido semelhante, por sua pertinência, merece ser citada literalmente a percuciente crítica de Damásio de Jesus sobre o novo equívoco do legislador: “Andou mal mais uma vez. De acordo com a intenção da lei nova, chamar alguém de ‘negro’, ‘preto’, ‘pretão’, ‘negrão’, ‘turco’, ‘africano’, ‘judeu’, ‘baiano’, ‘japa’ etc., desde que com vontade de ofender-lhe a honra subjetiva relacionada com a cor, religião, raça ou etnia, sujeita o autor a uma pena mínima de um ano de reclusão, além de multa, maior do que a imposta no homicídio culposo (1 a 3 anos de detenção, art. 121, § 3º) e a mesma pena do autoaborto (art. 124) e do aborto consentido (art. 125). Assim, matar o feto e xingar alguém de ‘alemão batata’ têm, para o legislador, idêntico significado jurídico, ensejando a mesma resposta penal e colocando as objetividades jurídicas, embora de valores diversos, em plano idêntico”[3].
Por todas essas e outras razões, recomenda-se, mais que nos outros fatos delituosos, extrema cautela para não se correr o risco de inverter a discriminação preconceituosa, com o uso indevido e abusivo da proteção legal.
Para a configuração da injúria por preconceito, é fundamental, além do dolo representado pela vontade livre e consciente de injuriar, a presença do elemento subjetivo especial do tipo, constituído pelo especial fim de discriminar o ofendido por razão de raça, cor, etnia, religião ou origem. A simples referência aos “dados discriminatórios” contidos no dispositivo legal é insuficiente para caracterizar o “crime de racismo”, que, é bom que se diga, é inafiançável e imprescritível (artigo 5º, XLII, da CF). Enfim, recomenda-se muita cautela para evitar excessos e coibir as transgressões legais efetivas, sem contribuir para o aumento das injustiças.
É, para concluir, indispensável que o agente tenha consciência de que ofende a honra alheia em razão de raça, cor, etnia, religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.
4. O necessário cotejamento entre os crimes de injúria majorada e desacato
A conduta de ofender funcionário público no exercício ou em razão de suas funções pode propiciar enquadramentos legais diversos, admitindo, como se verá, algumas variáveis. Normalmente, tem-se tipificado como crimes de desacato (artigo 331 do CP) ou injúria majorada (artigo 140 combinado com 141, II do CP). No entanto, a partir da admissão dos tratados de direitos humanos como normas supralegais, recomenda-se, no mínimo, uma revisão conceitual, destacando-se algumas diferenças fundamentais entre os crimes de injúria e desacato.
Considera-se que o crime de desacato alcança especialmente a função pública exercida por determinada pessoa. Configura-se o desacato quando a ofensa ao funcionário público tem a finalidade de humilhar o próprio funcionário e o prestígio da atividade pública. Por isso, é imprescindível que a ofensa seja proferida na presença do funcionário público, pois somente assim estará demonstrada a dupla finalidade de inferiorizar o funcionário público e, via oblíqua, a própria função pública. Portanto, somente é admissível o desacato direto e imediato do funcionário público cumulado com ofensa desarrazoada da própria função pública.
Já o crime de injúria atinge a honra subjetiva do ofendido. Logo, o crime de injúria consuma-se quando a ofensa à dignidade ou ao decoro chega ao seu conhecimento, direta ou indiretamente, ofendendo e menosprezando o conceito que tem de si mesmo. Por isso, é indiferente que a ofensa tenha sido proferida na presença da vítima (injúria imediata) ou que tenha chegado ao seu conhecimento por intermédio de interposta pessoa (injúria mediata). Quando a injúria for praticada contra funcionário público, incidirá uma causa de aumento de pena.
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, mais ou menos no sentido que viemos discorrendo sobre a inadequação do crime de desacato, mas por um outro viés, qual seja, o da “inconvencionalidade” do questionado crime de desacato[4], invocando o artigo 13 da Convenção Americana de Direito Humanos (Pacto de São José da Costa Rica[5], a qual tem status supralegal e garante a liberdade de pensamento e de expressão, a exemplo de nossa Carta Magna. Em outros termos, esses tratados internacionais de direitos humanos estão acima da legislação infraconstitucional[6]. Nesse sentido, seguindo a orientação da referida convenção americana, a 5ª Turma do STJ, a unanimidade, em Habeas Corpus da relatoria do ministro Ribeiro Dantas, destacou que:
10. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos - CIDH já se manifestou no sentido de que as leis de desacato se prestam ao abuso, como meio para silenciar ideias e opiniões consideradas incômodas pelo establishment, bem assim proporcionam maior nível de proteção aos agentes do Estado do que aos particulares, em contravenção aos princípios democrático e igualitário. 11. A adesão ao Pacto de São José significa a transposição, para a ordem jurídica interna, de critérios recíprocos de interpretação, sob pena de negação da universalidade dos valores insertos nos direitos fundamentais internacionalmente reconhecidos. Assim, o método hermenêutico mais adequado à concretização da liberdade de expressão reside no postulado pro homine, composto de dois princípios de proteção de direitos: a dignidade da pessoa humana e a prevalência dos direitos humanos. 12. A criminalização do desacato está na contramão do humanismo, porque ressalta a preponderância do Estado - personificado em seus agentes - sobre o indivíduo. 13 (...).
Dessa forma, com elogiável interpretação do STJ, na senda da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, afastou a superproteção adicional a funcionários públicos contra as insatisfações dos “súditos”, na comparação com os cidadãos em geral. Reconheceu que um Estado Democrático de Direito deve se submeter ao controle popular e deve procurar atender aos anseios dos cidadãos exercendo uma boa atenção às suas demandas, sem criminalizar eventuais demonstrações mais agressivas de sua insatisfação com a administração pública.
https://oglobo.globo.com/sociedade/ator-espancado-por-bandidos-apos-segurancas-negarem-ajuda-22081539#ixzz4zBOaZh95.
Hungria, Nelson. Comentários ao Código Penal, p. 109.
Jesus, Damásio. Direito Penal, p. 225-6.
Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral, 23ª ed., São Paulo, Editora Saraiva, 2017, vol. 1, p. 263.
STF, RE 466.343, rel. min. Cezar Peluso, DJe 5/6/2009.
Vige no plano intermediário entre as leis ordinárias e a Constituição Federal.