Cezar Roberto Bitencourt
1. Considerações preliminares
A partir da sua entrada em vigor (20 de outubro de 2000), a Lei n. 10.028/2000 tem sido objeto de grande apreensão, quer pelos seus
destinatários, quer pela grande mídia nacional, quer pela população brasileira. Desnecessário, para os iniciados, insistir no princípio da reserva legal e na
irretroatividade da lei criminalizadora — “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” (art. 5º, XXXIX, da CF e art. 1º
do CP). Essa obviedade, contudo, não impediu que a grande mídia fizesse a tradicional confusão afirmando a retroatividade da lei, num primeiro momento,
para, posteriormente, mostrar-se inconformada ante a impossibilidade de a lei criminal alcançar os fatos anteriores praticados pelos prefeitos municipais,
repetindo, como gosta de fazer, que não passa de uma firula jurídica para assegurar a velha impunidade. Convenhamos, não precisamos perder tempo
para rebater esses “judiciosos” argumentos.
Faz-se necessário, por uma questão de justiça, a despeito do alarde dos “sãos propósitos das leis moralizadoras” (LC n. 101/2000 e Lei n. 10.028/2000),
afirmar que são tendenciosas e demagógicas, afora suas flagrantes deficiências técnicas e graves inconstitucionalidades. Como destacam, com
muita propriedade, Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini, “A quantidade de equívocos cometidos pelo legislador, faz com que a eficácia da Lei reste
subordinada à transposição de muitos obstáculos. Além das já conhecidas dificuldades de se dar aplicação aos dispositivos repressivos quando se trata
de buscar a punição de agentes com elevado poder econômico e político, o 1º Jurista, advogado criminalista e professor do Programa de Pós Graduação em
Ciências Criminais (Mestrado e Doutorado) e do Mestrado em Direito da Faculdade Grama, legislador acaba por contribuir com esta situação ao elaborar Lei sem a devida
preocupação com a técnica legislativa e contendo flagrantes vícios de constitucionalidade”.
Na verdade, o “sábio legislador” dispensa tratamento diferenciado aos administradores públicos que pratiquem as mesmas condutas: para os
prefeitos municipais, comina pena de prisão, além da perda do cargo, com inabilitação da função pública; para os detentores de poder nas esferas federal
e estadual (Presidente da República, Governadores dos Estados etc.), ao contrário, comina-lhes, tão somente, as chamadas sanções político-
administrativas. Esse odioso ardil político-jurídico, contudo, não mereceu o destaque devido, deixando a população acreditar que a cruzada pela
moralidade pública era efetiva e séria. Para concretizar essa “armadilha” aos prefeitos municipais, utiliza-se habilmente da Lei n. 1.079/50 para os “grandes
mandatários” antes referidos, a qual, para os incautos, trata dos “crimes de responsabilidade”, mas que, ardilosamente, não lhes comina qualquer sanção
penal. Nesse sentido, revoltam-se também Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini, afirmando: “Há ofensa flagrante ao princípio da igualdade, por meio
do qual, qualquer descrímen praticado pelo legislador deve estar fundamentado em critério de necessidade e de razoabilidade, atributos que não se fazem
presentes. Deixa de existir qualquer razão para que se imputem consequências jurídicas diferenciadas para condutas idênticas praticadas por entes políticos,
sejam eles da esfera municipal (que no caso é mais gravemente punido), ou estadual, ou federal (para estes níveis, não há previsão de idêntica pena)”.
Todos queremos, com urgência, a moralização da administração pública, mas não podemos esquecer que vivemos em um Estado Democrático de
Direito. Constata-se, na verdade, o açodamento dos legisladores brasileiros, mais uma vez preocupados em utilizar o direito penal simbolicamente,
enganando uma população carente, ignorante e mal informada, fazendo crer que “paladinos da moralidade pública” estão no poder e decidiram fazer “caça
às bruxas” a qualquer preço. A própria mídia nacional está sendo enganada pelos detentores do poder, e, convencida do seu papel de levar a “boa nova
aos homens de boa vontade”, passou a incutir na opinião pública a legitimidade e suficiência dessa satisfação básica aos seus anseios de Justiça,
moralizadores, definitivamente, das finanças públicas e da administração pública em geral. Contudo, tudo isso não passou de uma farsa: para os
prefeitos, a praticamente inviabilidade de concluir seus mandatos, mesmo com a mais absoluta honestidade, sem sofrer condenação criminal e ser expostos à
execração pública, enquanto os demais mandatários — os próprios superiores legisladores, governadores, presidentes da república e outros destinatários da
Lei n. 1.079/50 — jamais serão alcançados pela lei penal. Na realidade, aqueles que exercem função executiva em nível federal e
estadual somente terão possibilidade de ser alcançados pelos crimes constantes do novo capítulo acrescentado ao Código Penal.. Enfim, com a
conjugação da Lei n. 10.028/2000 com a Lei Complementar n. 101/2000, nenhum dos novos prefeitos concluirá seu mandato sem responder
criminalmente, nos termos do Decreto-Lei n. 201/67 e do próprio Código Penal. Dessa forma, a Lei n. 10.028/2000 introduziu no sistema jurídico-penal
brasileiro novas figuras penais, quer no Código Penal, quer no Decreto-Lei n. 201/67. No Código Penal foi acrescentado um capítulo ao Título XI, que trata
Dos crimes contra a Administração Pública, sob a rubrica de Crimes contra as finanças públicas, além de redefinir o crime de denunciação caluniosa (art.
339). No decreto-lei referido, foram incluídos oito novas figuras delitivas em seu art. 1º, que tipifica os crimes de responsabilidade de prefeitos. Somente para os prefeitos.
Essas considerações representaram nossas primeiras e apressadas reflexões, que têm a pretensão única de contribuir e tranquilizar a sofrida
classe de prefeitos, a despeito da existência, como em toda classe de pessoas, de alguns cuja conduta não os recomenda. Neste ensaio, que escrevemos
ainda no ano de 2000, fizemos essas críticas que se confirmaram ao longo do tempo; contudo os crimes de responsabilidade, pelo menos, podem
fundamentar a declaração de impreachment, pela qual se pode afastar do poder, legitimamente, o seu infrator.
2. Pressuposto e fundamentos dos crimes contra as finanças públicas
O art. 37 da CF estabelece que “a administração pública direta e indireta
de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade,
publicidade e eficiência”. Enfim, a improbidade administrativa, disciplinada pela Lei n. 8.429/92, ampliada e reforçada pela Lei Complementar n. 101, de
4 de maio de 2000 (responsabilidade fiscal), constitui pressuposto dos crimes contra as finanças públicas. Além do citado art. 37 da Constituição
Federal, o art. 165 dispõe que leis estabelecerão o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual; o art. 167 fixa as vedações e
proibições referentes à gestão pública das receitas e despesas; a Lei Complementar n. 101/2000 complementa o arcabouço constitucional,
disciplinando a responsabilidade fiscal.
Harmonizando e complementando o sistema jurídico, a Lei n. 10.028/2000 acrescentou um novo capítulo ao último título da Parte Especial do Código
Penal, com os arts. 359-A a 359-H, criando novos tipos penais, objetivando proteger a Administração Pública, particularmente em relação a suas finanças.
3. Responsabilidade fiscal, criminal e improbidade administrativa
A partir da Lei de Improbidade Administrativa (Lei n. 8.429/92), com a edição da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC n. 101/2000), complementada
pela Lei n. 10.028/2000, que criou novos tipos penais — crimes contra as finanças públicas —, tornam-se efetivos os princípios constitucionais da
Administração Pública (art. 37 da CF). E, ainda, princípios constitucionais, disciplinados em lei ordinária e em lei complementar, acabaram sendo incluídos
no Código Penal (novo capítulo no Título dos Crimes Contra a Administração Pública) e tipificados como crimes.
A legislação específica prevê sanções de natureza política (suspensão de direitos políticos — arts. 37, § 4º, da CF e 12, I, da Lei n. 8.429/92),
administrativa (perda de cargo e função pública, proibição de contratar com o Poder Público etc. — art. 12, I, da Lei n. 8.429/92), civil (ressarcimento de dano
e multa civil — art. 12, I, da Lei n. 8.429/92), pecuniária (multa aplicável por Tribunal de Contas a chefes de Poderes e ocupantes de cargos de direção —
art. 5º da Lei n. 10.028/2000) e penal (prisão, multa e penas restritivas de 2. Ver Rui Stoco, Improbidade administrativa e os crimes de responsabilidade fiscal, Bol.
IBCCrim, n. 99, fev. 2001, p. 2-5. direitos — Lei n. 10.028/2000, que criou o último capítulo do CP e deu nova redação à Lei n. 1.079/50 e ao Decreto-lei n. 201/67).
Por tudo isso, eventual sentença penal condenatória por crimes da Lei n. 10.028/2000, embora constitua título executivo no cível (art. 63 do CPP), não abrange as demais
sanções aqui referidas.
P.S. Escrevemos este texto no final do ano 2000, fazendo, inclusive, uma
espécie de profecia, que, aliás, o tempo encarregou-se de confirmar as nossas
previsões.