28 de dezembro de 2017, 7h06

Por Cezar Roberto Bitencourt

Antes de criticar-se o indulto natalino concedido, neste ano, seria bom que a sociedade tivesse um pouco de conhecimento sobre a situação deplorável que se encontra o sistema penitenciário brasileiro como um todo, aliás, que tem sido condenado pelos organismos internacionais. Há pouco mais de ano escrevi sobre uma pequena reforma particular realizada no Presídio da Papuda[1] em Brasília que indignou setores do Parquet local. Pedimos vênia para reproduzir aqui algumas passagens desse texto.

Com efeito, a mídia nacional ocupou-se de uma pequena reforma de um dos pavilhões do “Complexo Penitenciário da Papuda”, representada apenas por uma simples pintura, com a colocação de sanitário com vaso, pia e uma pequena ampliação de cada cela. Os “fiscais do sistema penitenciário”, que têm a obrigação de zelar pela segurança, bem-estar, limpeza, higiene e tratamento humanitário dos “reeducandos” escandalizou-se com a melhora das condições dos locais dessa área. Essa mini-reforma, que o próprio Estado deveria realizar em todos os presídios, apenas atendeu as exigências mínimas do art. 88 da Lei de Execução Penal, quais sejam: cela individual, com área mínima de 6m quadrados, contendo dormitório, aparelho sanitário e lavatório. Ademais, cada cela deverá conter, segundo o mesmo texto legal: salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana, algo absolutamente inexistente na imensa maioria das casas prisionais.

As prisões brasileiras em quase sua totalidade não satisfazem nenhuma dessas exigências, inclusive o complexo penitenciário da Papuda, em Brasília. Mas essas carências históricas nunca indignaram os fiscais do sistema, quais sejam, os Promotores ou Procuradores encarregados de fiscalizar os presídios, pelo menos nada disso nunca veio a público. A violência das prisões, o empilhamento de presos, a falta de vagas, a inexistência de celas individuais, de vasos sanitários, de camas ou colchões (dormem no concreto), a insuportável insalubridade e desrespeito à dignidade humana são a tônica de todos os presídios nacionais. Aliás, essas deficiências sistêmicas ganharam repercussão mundial e envergonharam a nação brasileira, a ponto de a Itália negar a extradição de brasileiro em razão das péssimas condições de nosso desumano e indigno sistema penitenciário, mas não consta que tenha indignado o Ministério Público que continua empilhando pessoas nas prisões, inclusive com penas que deveriam ser substituídas por penas alternativas.

Essa pequena reforma que apenas procurou atender aquelas exigências mínimas da Lei 7.210/84, que é dever do Estado, indignou de tal forma setores do Ministério Público da capital brasileira, que a chamou, inacreditavelmente, de “surreal”! O ineditismo reside, no entanto, na omissão absoluta do Estado ter levado um particular realizar as reformas absolutamente necessárias. Essa revolta do Ministério Público, segundo se alega, deve-se ao fato de dita reforma não ter sido levada a efeito pelo Poder Público, órgão permanentemente omisso, sob o conhecido argumento de falta de recursos orçamentários. Um empresário recolhido ao sistema teria bancado dita reforma. Abriu-se caça às bruxas, exigindo-se punição de funcionários que possam ter liberado a melhora da imundície que é o sistema penitenciário local.

Definitivamente, deve-se mergulhar na realidade atual, qual seja, na desumanidade dos presídios brasileiros, enfrentar o caos do nosso sistema penitenciário. Nessas prisões o mínimo que se perde é liberdade, pois ao adentrar no sistema prisional já se perde a identidade e vira-se um número qualquer, perde-se, simultaneamente, dignidade e honra, sendo submetido a humilhação, a maus tratos, à miséria, a violência sexual, a doenças infecto-contagiosas! Isso tudo é apenas a síntese do que representa o ingresso de alguém no sistema penitenciário nacional.

A prisão é uma fábrica de delinquente, sendo impossível alguém nela entrar e de lá sair melhor do que entrou! Até para sobreviver nesse meio altamente criminógeno o indivíduo é obrigado a optar de imediato por uma facção criminosa, que é o vestibular para o crime. Não há alternativa: opta ou morre! E aqui fora, nossos ingênuos legisladores qualificam, majoram ou criminalizam a simples conduta formal de integrar facção criminosa, como se fosse possível voluntariamente permanecer fora dela dentro das prisões.

A sociedade brasileira, de certa forma, é coautora quando manda para a prisão alguém que dela não precisa, assim, exemplificativamente, quando lhe cabe pena alternativa (é um direito do cidadão), mas erroneamente o sistema judicial — que nos representa — não substitui determinada pena e impõe o recolhimento ao sistema prisional. Nesses casos, ou seja, nas hipóteses de penas substituíveis, nós sociedade estamos oportunizando a um simples batedor de carteira, por exemplo, aperfeiçoar-se na arte da criminalidade, assegurando-lhe a frequência à universidade do crime, onde fará todo seu aprendizado acadêmico e prático, e, se ficar mais tempo poderá pós-graduar-se em criminalidade aplicada.

Essa é a realidade penitenciária brasileira, capaz de transformar aquele simples batedor de carteira em um grande e perigoso marginal, altamente qualificado, pós-graduado pela universidade do crime, cujo “crédito educativo” é financiado por nós brasileiros, ainda que através de nossos representantes legais. Sabe-se, hoje, que a prisão reforça os valores negativos do condenado. O réu tem um código de valores distinto daquele da sociedade. Daí a advertência de Claus Roxin de “não ser exagero dizer que a pena privativa de liberdade de curta duração, em vez de prevenir delitos, promove-os”[2].

Indulto e outras causas extintivas da punibilidade
Embora nem sempre tenha sido assim, para o indivíduo ser condenado, isto é, para se lhe imputar uma pena criminal, necessita encontrar-se vivo no momento de sua condenação ou aplicação da pena, por tal razão, a morte é a primeira causa extintiva da punibilidade. Consequentemente, esta é a primeira causa de extinção da punibilidade, quando mais não seja, pela inviabilidade de sua execução. Aliás, essa causa – morte do agente - é uma decorrência natural do princípio da personalidade da pena, hoje preceito constitucional (art. 5º, XLV, da CF), segundo o qual, a pena criminal não pode passar da pessoa do criminoso: mors omnia solvit. Nem mesmo a pena de multa pode ser transmitida aos herdeiros.

 

Logicamente, nem sempre foi assim. A História é rica em exemplos de pessoas julgadas mesmo depois da morte, como as penas infamantes, que atingiam não só a memória do morto, mas inclusive os seus descendentes. O princípio da personalidade da pena é uma conquista do Direito Penal moderno. No entanto, a liberal Constituição brasileira de 1988 acenou com a possibilidade de criação da odiosa e proscrita pena de confisco, além de possibilitar que a sua aplicação se estenda aos sucessores do condenado e contra eles seja executada, violando o princípio constitucional da personalidade da pena. Poucos penalistas deram-se conta dessa monstruosa contradição e bradaram sua flagrante inconstitucionalidade, por sua aberrante contradição com todos os princípios vinculados aos direitos humanos e às garantias fundamentais insculpidas, basicamente, em seu citado art. 5º. Assim, embora pareça supérflua essa previsão, objetiva plasmar o repúdio a práticas punitivas sobre o cadáver, a memória ou os descendentes do morto respeitando o princípio da personalidade da pena. Enfim, cumpre destacar que referido princípio vige tão somente para as sanções criminais, pecuniárias ou não, não tendo aplicabilidade às consequências civis do crime.

Mas, neste limitado espaço daremos uma atenção especial ao instituto do indulto, principalmente, pela atual polêmica levantada pelo Ministério Público, para variar, especialmente sobre legitimidade, importância e razoabilidade no atual contexto político-jurídico; para melhor contextualizá-lo, faremos pequena digressão sobre a anistia e a graça, os quais são dois institutos que, embora distintos, apresentam grande afinidade com aquele.

Anistia, graça e indulto como causas excludentes de culpabilidade
Anistia, graça e indulto constituem algumas das formas mais antigas de extinção da punibilidade, conhecidas no passado como clemência soberana — indulgencia principis —, e justificavam-se pela necessidade, não raro, de atenuar os rigores exagerados das sanções penais, muitas vezes desproporcionais ao crime praticado, como tem ocorrido nos últimos tempos. A anistia, já se disse, é o “esquecimento jurídico” do ilícito e tem por objeto fatos (não pessoas) definidos como crimes, de regra, políticos, militares ou eleitorais, excluindo-se, normalmente, os crimes comuns. A anistia pode ser concedida antes ou depois da condenação e, como o indulto, pode ser total ou parcial. A anistia extingue todos os efeitos penais, inclusive o pressuposto de reincidência, permanecendo, contudo, a obrigação de indenizar pelo dano causado.

A graça, por sua vez, tem por objeto crimes comuns e dirige-se a um indivíduo determinado, condenado irrecorrivelmente. A atual Constituição Federal, no entanto, não mais consagra a graça como instituto autônomo, embora continue relacionado no Código Penal em vigor. Por isso, na prática, a graça tem sido tratada como indulto individual. A iniciativa do pedido de graça pode ser do próprio condenado, do Ministério Público, do Conselho Penitenciário ou da autoridade administrativa (art. 188 da LEP).

Por fim, o indulto coletivo (art. 107, II, 3ª figura, do CP) ou indulto propriamente dito, destina-se a um grupo indeterminado de condenados e é delimitado pela natureza do crime e quantidade da pena aplicada, além de outros requisitos que o diploma legal que o concede pode estabelecer. Alguns doutrinadores chamam de indulto parcial a comutação de penas, também previsto no texto constitucional, que não extingue a punibilidade, diminuindo tão somente a quantidade de pena a cumprir. Por sua vez, o próprio texto constitucional determina que são insuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e os crimes definidos como hediondos (art. 5º, XLIII, da CF e Lei n. 8.072).

A concessão de anistia é de competência exclusiva do Congresso Nacional (art. 48, VIII, da CF), independentemente da aceitação dos anistiados, e, uma vez concedida, não pode ser revogada. Já a concessão de graça e indulto é prerrogativa do Chefe do Executivo, que, no entanto, poderá delegá-la a seus Ministros (art. 84, XII e parágrafo único, da CF).

O indulto natalino concedido anualmente em nosso sistema jurídico
O indulto natalino deste ano de 2017, concedido presidencial publicado no Diário Oficial da União (DOU) do dia 22 do corrente mês de dezembro, reduz o tempo de cumprimento das penas a condenados por crimes cometidos sem violência ou grave ameaça, dentre os quais incluem-se os crimes de corrupção, de lavagem de dinheiro e até de organização criminosa. O referido decreto não exclui condenações elevadas de sua incidência e reduz para um quinto o tempo de cumprimento da pena para os não reincidentes e um terço para os reincidentes. Com regras que beneficiará maior número de presos, a medida deste ano contempla todos aqueles que cumpriram um quinto da pena, independentemente do tempo total de condenação, se não forem reincidentes. Para os reincidentes, é preciso ter cumprido um terço da pena, pelo menos.

Na realidade, o indulto é um importante instrumento de política penitenciária cuja legitimidade vem de séculos passados e historicamente tem sido adotado em toda nossa legislação codificada, como o principal meio de enfrentamento do grave problema do encarceramento massivo brasileiro, como demonstramos acima, cuja ressocialização não é objeto da prática penitenciária em nosso sistema.

A abrangência dessa indulgência natalina provocou algumas críticas um tanto quanto ácidas de segmentos variados da sociedade, inclusive de membros setorizados do Ministério Público, os quais fazem campanhas para o aumento do aprisionamento de condenados por crimes contra a administração pública.

No entanto, esses mesmos críticos em momento algum demonstraram preocupação com a miséria do sistema penitenciário nacional, repetindo, ignorando, inclusive, que em alguns estados da federação há centenas e centenas de presos amarrados em postes de energia, em viaturas policiais ou empilhados em cadeias públicas em razão da inexistência de vagas nos estabelecimentos penitenciários. Pugnam pelo agravamento das prisões, endurecimento de regimes de cumprimento da pena, dificultam a aplicação de penas alternativas, enquanto eles próprios, sem a participação do Poder Judiciário, concedem perdão total e redução de até dois terço de penas a poderosos criminosos delatores, tais como, aos diretores da JBS, Sérgio Machado, Paulo Roberto Costa etc., que vivem em grandes mansões e devolveram apenas uma parte do quanto “roubaram” de todos nós!

Essa política de segmentos do Ministério Público deixa uma mensagem subliminar para que o cidadão corrupto ou corruptor “roube” da Nação, mas que “roube” muito por que assim poderá comprar tudo o que quiserem, inclusive, sua liberdade, bastando dedurar alguém importante como fizeram esses criminosos delatores.

Ademais, o Ministério Público, como destacamos acima, tampouco se preocupa com a podridão do Sistema Penitenciário, com a contaminação das casas prisionais com doenças infectos contagiosas, com a superlotação dos Presídios e a ausência de vagas nas penitenciárias brasileiras. Apenas o Parquet quer empilhar mais presos uns sobre os outros em condições sub-humanas em cubículos imundos e infectados que levaram os organismos internacionais a condenarem o País algumas vezes pela desumanidade de seu sistema penitenciário.

Ignoram esses setores que as prisões brasileiras são dominadas pelas facções criminosas, fechando os olhos para essa verdadeira calamidade pública, mesmo sabendo que a prisão é uma escola para o aperfeiçoamento do indivíduo no mundo da criminalidade, que a prisão não recupera ninguém por que não foi feita para recuperar alguém, por que é impossível recuperar alguém para a liberdade vivendo em condições de não liberdade.

Pois bem, o indulto natalino tem sido, enfim, o único meio político-criminal utilizado para reduzir a excessiva e insuportável multidão que lotam as nossas penitenciárias, buscando, em outros termos, minimizar o rigor do drama prisional, destinando-se somente aos presos que não praticaram crimes mediante violência ou grave ameaça.


Referido texto foi publicado na Revista Conjur, em 17 de agosto de 2016, sob o título “Misérias do cárcere e reforma do presídio da Papuda”, do qual reproduziremos, em linhas gerais, uma pequena parte aqui.

Roxin, Claus, A culpabilidade como critério limitativo da pena, Revista de Direito Penal, 11-12/17, Rio de Janeiro, 1974.

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